sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

“Dir-lhe-ei o que é escolher”

“Então Faulques falou durante um bocado – à sua maneira, entre pausas prolongadas e silêncios – de escolhas e acasos. Fê-lo referindo-se ao franco-atirador junto de quem passara quatro horas deitado no chão do terraço de um edifício de seis andares de onde se dominava uma vista ampla de Sarajevo. O franco-atirador era um sérvio-bósnio de uns quarenta anos, magro e de olhos tranquilos, que cobrara a Faulques duzentos marcos para o deixar ficar ao seu lado enquanto disparava sobre as pessoas que corriam a pé ou passavam a toda a velocidade de automóvel pela avenida Radomira Putnika, na condição de o fotografar a ele e não à rua, para evitar que localizassem a sua posição através do enquadramento. Conversaram em alemão durante a vigília, enquanto Faulques brincava com as máquinas para que o outro se habituasse a elas, e o seu interlocutor fumava um cigarro atrás do outro, inclinando-se de uma espingarda SVD Dragunov, encaixada entre dois sacos de terra, onde estava apoiada uma potente mira telescópica que apontava para a rua, através de uma fresta estreita aberta na parede. Sem complexos, o sérvio tinha admitido que disparava igualmente contra homens, mulheres ou crianças e Faulques não lhe fez perguntas de índole moral, entre outras coisas porque não estava ali para isso e também porque conhecia sobejamente – não era o seu primeiro franco-atirador – os motivos simples pelos quais um homem com as doses correctas de fanatismo, rancor ou desejo de lucro mercenário podia matar indiscriminadamente. Fez perguntas técnicas, de profissional para profissional, acerca das distâncias, campo de visão, influência do vento e da temperatura na trajectória das balas. Explosivas, especificara o outro num tom de voz objectivo. Capazes de fazer explodir uma cabeça como se fosse um melão sob um martelo, ou rebentar as entranhas com total eficácia. E como escolhes, perguntou Faulques. Refiro-me se disparas ao acaso ou seleccionas os alvos. Então o sérvio expôs uma coisa interessante. Nisto não há acaso, explicou. Ou havia muito pouco: o necessário para que alguém decidisse passar ali no momento certo. O resto era coisa sua. A alguns matava-os, a outros não. Tão fácil como isso. Dependia da forma de andar, de correr, de parar. Da cor do cabelo, dos gestos, da atitude. Das coisas a que os associava ao vê-los. No dia anterior tinha estado a apontar para uma rapariguinha ao longo de quinze ou vinte metros e, de repente, um gesto casual desta fê-lo pensar na sua sobrinha pequena – nesse ponto, o franco-atirador abriu a carteira e mostrou a Faulques uma fotografia familiar. – De modos que não atirou sobre ela, escolhendo em troca uma mulher que estava perto, debruçada a uma janela, quem sabe, talvez à espera de ver como matavam a rapariga que caminhava distraída a descoberto. Por essa razão dizia que isso do acaso era relativo. Havia sempre alguma coisa que o fazia decidir-se por este ou por aquele, dificuldades operacionais à parte, claro. Nas crianças, por exemplo, era mais difícil acertar porque nunca estava quietas. Passava-se o mesmo com os condutores de automóveis em andamento: às vezes deslocavam-se depressa de mais. De repente, a meio da explicação, o franco-atirador ficara tenso, as suas feições pareceram definhar e as suas pupilas contraíram-se enquanto se inclinava sobre a espingarda, ajustava a culatra ao ombro, colava o olho direito no visor e colocava suavemente o dedo no gatilho. Jagerei, sussurrara no seu mau alemão, entre os dentes, como se lá em baixo o pudessem ouvir. Caça à vista. Decorreram alguns segundos enquanto a espingarda descrevia um lento movimento circular para a esquerda. Depois, com um único estampido, a culatra bateu-lhe no ombro e Faulques pôde fotografar o primeiro plano daquela cara magra e tensa, com um olho semicerrado e o outro aberto, a pele por barbear, os lábios apertados como uma linha implacável: um homem qualquer, com os seus critérios selectivos, as suas recordações, antipatias e inclinações, fotografado no momento exacto de matar. Bateu ainda uma segunda chapa quando o franco-atirador afastou a cara da culatra da espingarda, olhou para a objectiva da Leica com olhos gelados e, depois de beijar ao mesmo tempo os três dedos da mão que tinha disparado, polegar, indicador e médio, fez com eles a saudação sérvia da vitória. Queres que te diga em quem acertei?, perguntou. Porque escolhi esse alvo e não outro? Faulques, que verificava a luz com o fotómetro, não quis saber. A minha máquina não fotografou isso, disse, logo não existe. Então o outro olhou para ele em silêncio durante algum tempo, sorriu apenas, depois ficou sério e perguntou-lhe se há dois dias tinha passado junto da ponte Masarikov ao volante de um Volkwagen com fita adesiva vermelha sobre o capo. Faulques ficou imóvel por instantes, acabou de guardar o fotómetro no se saco de lona e respondeu com outra pergunta cuja resposta adivinhava. Então o sérvio deu uma palmada leve na Zeiss telescópica da sua espingarda. Porque te tive, respondeu, nesta mira durante quinze segundos. Restavam-me apenas duas balas e, depois de pensar, disse para comigo: hoje não vou matar este glupan. Este tonto.”

Em “O Pintor de Batalhas” de Arturo Pérez-Reverte.

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